Em meio a toda a discussão gerada pela onda de protestos que têm ocorrido no Brasil, achei interessante reforçar algumas das palavras de Ludwig von Mises.
Recortei alguns trechos dos 2 primeiros capítulos de um dos livros dele que mais gosto. É um livro bastante objetivo, sem firulas. Pode ser baixado (em formatos PDF, MOBI e ePub) AQUI, gratuitamente.
Recomendo a leitura para quem deseja aproveitar este momento de (supostas) mudanças no país para refletir sobre o que deseja para o Brasil.
OBS: Como retirei os trechos do PDF, a formatação está “estranha”, mas isso não impede a leitura. O mais importante é o conteúdo, mas já peço desculpas antecipadamente pela forma.
AS SEIS LIÇÕES
Ludwig von MisesTraduzido por Maria Luiza Borges
7ª Edição
Copyright © Margit von Mises, 1979
Título do original em inglês: ECONOMIC POLICY: THOUGHTS FOR TODAY AND TOMORROW
Revisão para nova ortografia: Núbia Tavares
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Ludwig von Mises do Instituto Liberal – RJ
Bibliotecário Responsável: Otávio Alexandre J. De OliveiraCAPÍTULO I
PRIMEIRA LIÇÃO
O CAPITALISMOCertas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteira-
mente equivocadas. Assim, atribuem-se a capitães de indústria e
a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do cho-
colate”, “o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”. Ao usar essas
expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma di-
ferença entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de
outrora. Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do
chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de
seus compradores. O rei do chocolate – ou do aço, ou do automó-
vel, ou qualquer outro rei da indústria contemporânea – depende
da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições
de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo
que o oferecido por seus concorrentes.Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status
social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de
sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.
Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico – lorde ou du-
que –, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava,
pelo resto dos seus dias.No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficia-
mento da época existiam quase exclusivamente em proveito dos
ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da população eu-
ropeia) trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias
de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rígido sistema da
sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvol-
vidas regiões da Europa.Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um ex-
cesso de gente no campo. Os membros dessa população excedente,
sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação. Também não
lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo
acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O número desses
“párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém sou-
besse o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra,
“proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou ca-
sas de correção. Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos
Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão nu-
merosa que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à
preservação do sistema social vigente.Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou
outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na
Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores. Na-
quele tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete mi-
lhões de habitantes, dos quais mais de um milhão – provavelmente
dois – não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor
nada proporcionava. As medidas a tomar com relação a esses deser-
dados constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra.Outro sério problema era a falta de matérias-primas. Os in-
gleses eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos,
no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de
que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas ca-
sas? Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.
Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não
tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do
capitalismo moderno. Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis,
surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer
pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma
inovação. Esses inovadores não produziam artigos caros, acessí-
veis apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que
pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem
do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o começo da produção
em massa – princípio básico da indústria capitalista. Enquanto
as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da
gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente
para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as no-
vas indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis
a toda a população. Era a produção em massa, para satisfazer às
necessidades das massas.Este é o princípio fundamental do capitalismo tal como existe
hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa
extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos
mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas,
produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso ape-
nas dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude
das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fábricas
são, eles próprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas
se fabricam. Esta é a diferença básica entre os princípios capitalis-
tas de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.
Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferen-
ça entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande
empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados
Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse
cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda
naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa
detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a em-
presa de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos
que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia
seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos
os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram
por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam im-
possível a concorrência. Alegava-se que, na área dos transportes,
o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si
mesmo, pois que eliminara a concorrência. O que se descurava era
o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de
oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer
outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma des-
sas grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova
ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para
atender às necessidades do momento. Mas outros concorrentes não
tardaram a aparecer. A livre concorrência não significa que se possa
prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por
alguém. A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar
o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o ver-
dadeiro autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever
outra coisa. A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias,
por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para
fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque
em situação muito precária de competitividade.Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através
dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de
ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz res-
peito ao transporte de passageiros.O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada ho-
mem tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu clien-
te. E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio,
transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem
precedentes da população mundial.Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento
a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida. Hoje,
mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de
vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século
XVIII. E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmen-
te mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de
sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais
que “aventuras” políticas e militares evitáveis.Estes são os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um inglês –
ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do
mundo – afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há
uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população des-
te planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao
capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão
de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do
capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o
capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população
sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capita-
lismo, seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”[…]
Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produ-
zir artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores
mais do que estes ganhavam antes. É verdade que grande porcen-
tagem desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma an-
tes. Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes
fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acu-
mulação do capital e a implantação de um número cada vez maior
de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência
houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao
qual já me referi. A reiterada caracterização depreciativa do capi-
talismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e
os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim. A tese de
Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressu-
posto de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que
o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria
na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas
mãos, ou mesmo nas de um homem só. Como consequência, as
massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam
os bens dos opulentos proprietários.Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema ca-
pitalista, qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melho-
ria das condições dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a
Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx
afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover me-
lhores condições para a população trabalhadora era “absolutamente
errônea”. Qualificou a política sindical voltada para a reivindica-
ção de melhores salários e menor número de horas de trabalho de
conservadora – era este, evidentemente, o termo mais desabonador
a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem
uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de
salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo
“socialismo” – a posse dos meios de produção pelo governo.Se consideramos a história do mundo – e em especial a história
da Inglaterra a partir de 1865 – verificaremos que Marx estava erra-
do sob todos os aspectos. Não há um só país capitalista em que as
condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita. To-
dos esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos
produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialis-
tas de orientação marxista acreditavam que as condições dos traba-
lhadores jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a
famosa “lei de ferro dos salários”. Segundo esta lei, no capitalismo,
os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse
estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os
padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salá-
rios, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão
mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, en-
grossarão o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões
salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores
a um nível mínimo necessário para a subsistência – àquele nível
mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da
população trabalhadora.Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve
um conceito de trabalhador idêntico ao adotado – justificadamente
– pelos biólogos que estudam a vida dos animais. Dos camundon-
gos, por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento à
disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior núme-
ro deles sobreviverá. Se a restringirmos, restringiremos o número
dos sobreviventes. Mas com o homem é diferente. Mesmo o tra-
balhador – ainda que os marxistas não o admitam – tem carências
humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.
Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da po-
pulação; resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão
de vida média. É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em
desenvolvimento, às da África, por exemplo. Devemos compreen-
der, contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se
na disponibilidade de capital. Isso explica a diferença entre as
condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na
Índia. Neste país foram introduzidos – ao menos em certa medida
– modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efei-
to foi um aumento inaudito da população. No entanto, como esse
crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento
correspondente do montante de capital investido no país, o resul-
tado foi um agravamento da miséria. Quanto mais se eleva o capital
investido por indivíduo, mais próspero se torna o país.Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocor-
rem milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o
chamado milagre econômico alemão – a recuperação da Alema-
nha depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mun-
dial. Mas não houve milagre. Houve tão somente a aplicação
dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capi-
talismo, embora essa aplicação não tenha sido completa em todos
os pontos. Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de
recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não
é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas só-
lidas, pois que é delas que resulta.CAPÍTULO II
SEGUNDA LIÇÃO
O SOCIALISMOEstou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusión de la
Economia Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse
sistema de liberdade econômica? A resposta é simples: é a economia
de mercado, é o sistema em que a cooperação dos indivíduos na
divisão social do trabalho se realiza pelo mercado. E esse mercado
não é um lugar: é um processo, é a forma pela qual, ao vender e com-
prar, ao produzir e consumir, as pessoas estão contribuindo para o
funcionamento global da sociedade.Quando falamos desse sistema de organização econômica – a
economia de mercado – empregamos a expressão “liberdade eco-
nômica”. Frequentemente as pessoas se equivocam quanto ao seu
significado, supondo que liberdade econômica seja algo inteira-
mente dissociado de outras liberdades, e que estas outras liber-
dades – que reputam mais importantes – possam ser preservadas
mesmo na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade eco-
nômica significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem
o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da
sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem
liberdade para fazer o que quer.É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje
tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, atra-
vés da liberdade econômica, o homem é libertado das condições
naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liber-
dade; há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem
é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se
trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o signi-
ficado exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante, muitos
consideram que as liberdades sociais são independentes umas das
outras. Os que hoje se intitulam “liberais” têm reivindicado pro-
gramas que são exatamente o oposto das políticas que os liberais
do século XIX defendiam em seus programas liberais. Os preten-
sos liberais de nossos dias sustentam a ideia muito difundida de
que as liberdades de expressão, de pensamento, de imprensa, de
culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser
preservadas mesmo na ausência do que se conhece como liberdade
econômica. Não se dão conta de que, num sistema desprovido de
mercado, em que o governo determina tudo, todas essas outras li-
berdades são ilusórias, ainda que postas em forma de lei e inscritas
na constituição.Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono
de todas as máquinas impressoras, o governo determinará o que
deve e o que não deve ser impresso. Nesse caso, a possibilidade de
se publicar qualquer tipo de crítica às ideias oficiais torna-se prati-
camente nula. A liberdade de imprensa desaparece. E o mesmo se
aplica a todas as demais liberdades.Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberda-
de de escolher qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu
próprio modo de inserção na sociedade. Num sistema socialista é
diferente: as carreiras são decididas por decreto do governo. Este
pode ordenar às pessoas que não lhe sejam gratas, àquelas cuja pre-
sença não lhe pareça conveniente em determinadas regiões, que se
mudem para outras regiões e outros lugares. E sempre há como jus-
tificar e explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano
governamental exige a presença desse eminente cidadão a cinco mil
milhas de distância do local onde ele estava sendo ou poderia ser
incômodo aos detentores do poder.É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado
não é uma liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade
perfeita não existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade
tem algum significado. Os pensadores que desenvolveram, no sécu-
lo XVIII, a ideia da “lei natural” – sobretudo Jean-Jacques Rousseau
– acreditavam que um dia, num passado remoto, os homens haviam
desfrutado de algo chamado liberdade “natural”. Mas nesses tem-
pos remotos os homens não eram livres – estavam à mercê de todos
os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de
Rousseau: “O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em
toda parte”, talvez soem bem, mas na verdade o homem não nasceu
livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos
pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade, não
teria podido sobreviver.Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto
dos demais como estes dependem dele. A sociedade, quando regida
pela economia de mercado, pelas condições da economia livre, apre-
senta uma situação em que todos prestam serviços aos seus conci-
dadãos e são, em contrapartida, por eles servidos. Acredita-se, que
existem na economia de mercado chefões que não dependem da boa
vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os capitães de indústria,
os homens de negócios, os empresários seriam os verdadeiros che-
fões do sistema econômico. Mas isso é uma ilusão. Quem manda no
sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de presti-
giar um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compeli-
dos ou a abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou
a ajustar suas ações aos desejos e às ordens dos consumidores.Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice
Potter, nome de solteira de Lady Passfield (tambem muito conhe-
cida por conta de seu marido Sidney Webb). Essa senhora, filha
de um rico empresário, trabalhou quando jovem como secretária
do pai. Em suas memórias, ela escreve: “Nos negócios de meu pai,
todos tinham de obedecer às ordens dadas por ele, o chefe. Só a ele
competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem alguma.” Esta é
uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos consumi-
dores, dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa
economia de mercado, exclusivamente voltada que estava para as
ordens expedidas dentro dos escritórios ou da fábrica do pai.Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em
mente as palavras que o grande economista francês Frédéric Bas-
tiat usou como título de um de seus brilhantes ensaios: “Ce quon
voit et ce qu’on ne voit pas” (“O que se vê e o que não se vê”). Para
compreender como funciona um sistema econômico, temos de le-
var em conta não só o que pode ser visto, mas também o que não
pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada
por um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que este-
jam na mesma sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas
ao chefe por seus clientes.O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última ins-
tância, são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é so-
berano. Prova disto é o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo.
Este é o privilégio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer
erros: ninguém o pode impedir de cometê-los, embora, obviamen-
te, deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor é
supremo ou soberano, não estamos afirmando que está livre de
erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes
os consumidores compram ou consomem artigos que não deviam
comprar ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista
de governo pode impedir, através de um controle sobre o que as
pessoas consomem, que elas se prejudiquem, é falsa. A visão do
governo como uma autoridade paternal, um guardião de todos, é
própria dos adeptos do socialismo.Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, há al-
guns anos, uma experiência que foi qualificada de “nobre”. Essa
“nobre experiência” consistiu numa lei que declarava ilegal o con-
sumo de bebidas tóxicas. Não há dúvida de que muita gente se
prejudica ao beber conhaque e whisky em excesso. Algumas au-
toridades nos Estados Unidos são contrárias até mesmo ao fumo.
Certamente há muitas pessoas que fumam demais, não obstante o
fato de que não fumar seria melhor para elas. Isso suscita um pro-
blema que transcende em muito a discussão econômica: põe a nu
o verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que é bom
impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em
excesso, haverá quem pergunte: “Será que o corpo é tudo? Não se-
ria a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente
do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?”
Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo hu-
mano deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar,
deve ou não beber, nada poderemos replicar a quem afirme: “Mais
importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o homem
se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e
assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo impedir que se
cometam esses erros.” E, como todos sabem, por centenas de anos
os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu
dever. Nem isso aconteceu apenas em épocas remotas. Não faz
muito tempo, houve na Alemanha um governo que considerava
seu dever discriminar as boas e as más pinturas – boas e más, é
claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora
reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em Viena:
era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal.
E tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que
divergissem daquelas do Führer supremo.A partir do momento em que começamos a admitir que é
dever do governo controlar o consumo de álcool do cidadão, que
podemos responder a quem afirme ser o controle dos livros e das
ideias muito mais importante? Liberdade significa realmente li-
berdade para errar. Isso precisa ser bem compreendido. Podemos
ser extremamente críticos com relação ao modo como nossos
concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos
considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa
sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas manei-
ras de manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos
deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros;
escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações
nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas
ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los
de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer
que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las.É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é
obrigado a fazer o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o
cidadão livre – e é isso que significa liberdade – tem a possibilidade
de escolher seu próprio modo de vida. Sem dúvida esse sistema ca-
pitalista pode ser – e é de fato – mal usado por alguns. É certamente
possível fazer coisas que não deveriam ser feitas. Mas se tais coisas
contam com a aprovação da maioria do povo, uma voz discordante
terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concida-
dãos. Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar
constrangê-los pela força, pela força policial do governo.Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus
concidadãos ao prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que
tinham em mente os pensadores liberais do século XVIII, quan-
do falavam da harmonia dos interesses – corretamente compre-
endidos – de todos os grupos e indivíduos que constituem a po-
pulação. E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os
socialistas se opuseram. Falaram de um “conflito inconciliável
de interesses” entre vários grupos.Que significa isso? Quando Karl Marx – no primeiro capítulo
do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou
seu movimento socialista – sustentou a existência de um conflito
inconciliável entre as classes, só pode evocar, como ilustração
à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade pré-
capitalista. Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia
em grupos hereditários de status, na Índia denominados “castas”.
Numa sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo,
cidadão francês; nascia na condição de membro da aristocracia
francesa, ou da burguesia francesa, ou do campesinato francês.
Durante a maior parte da Idade Média, era simplesmente um
servo. E a servidão, na França, ainda não havia sido inteiramen-
te extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em outras
regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde. Mas
a pior forma de servidão – forma que continuou existindo mes-
mo depois da abolição da escravatura – era a que tinha lugar nas
colônias inglesas. O indivíduo herdava seu status dos país e o
conservava por toda a vida. Transferia-o aos filhos. Cada grupo
tinha privilégios e desvantagens. Os de status mais elevado ti-
nham apenas privilégios, os de status inferior, só desvantagens. E
não restava ao homem nenhum outro meio de escapar às desvan-
tagens legais impostas por seu status senão a luta política contra
as outras classes. Nessas condições, pode-se dizer que havia “um
conflito inconciliável de interesses entre senhores de escravos
e escravos”, porque o interesse dos escravos era livrar-se da es-
cravidão, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava,
para os seus proprietários, uma perda. Assim sendo, não há dú-
vida de que tinha de existir forçosamente um conflito inconcili-
ável de interesses entre os membros das várias classes.Não devemos esquecer que nesses períodos – em que as socieda-
des de status predominaram na Europa, bem como nas colônias que
os europeus fundaram posteriormente na América – as pessoas não
se consideravam ligadas de nenhuma forma especial às demais clas-
ses de sua própria nação; sentiam-se muito mais solidárias com os
membros de suas classes nos outros países. Um aristocrata francês
não tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus con-
cidadãos: a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países – os da
Itália, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aris-
tocratas de toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma
não compreendido, fora da França, pelos demais grupos da popula-
ção. As classes médias – a burguesia – tinham sua própria língua,
enquanto as classes baixas – o campesinato – usavam dialetos locais,
muitas vezes não compreendidos por outros grupos da população.
O mesmo se passava com relação aos trajes. Quem viajasse de um
país para outro em 1750 constataria que as classes mais elevadas,
os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo
alguém na rua, era possível perceber de imediato – pelo modo como
se vestia – a sua classe, o seu status.É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se
venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na
rua, não posso dizer qual é seu status. Concluo apenas que é um
cidadão argentino, não pertencente a nenhum grupo sujeito a restri-
ções legais. Isto é algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dúvida há
também diferenças entre as pessoas no capitalismo. Há diferenças
em relação à riqueza; diferenças estas que os marxistas, equivocada-
mente, consideram equivalentes àquelas antigas que separavam os
homens na sociedade de status.
Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos
não são como as que se verificam numa sociedade de status. Na
Idade Média – e mesmo bem depois, em muitos países – uma fa-
mília podia ser aristocrata e possuidora de grande fortuna, podia
ser uma família de duques, ao longo de séculos e séculos, fossem
quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade. Já
nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecni-
camente denominado pelos sociólogos de “mobilidade social”.
O princípio segundo o qual a mobilidade social opera, nas pala-
vras do sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto, é o da
“circulation des élites” (“circulação das elites”). Isso significa que
haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas, politica-
mente importantes, mas essas pessoas – essas elites – estão em
contínua mudança.Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não
se aplicaria a uma sociedade pré-capitalista de status. As famílias
consideradas as grandes famílias aristocráticas da Europa perma-
necem as mesmas até hoje, ou melhor, são formadas hoje pelos
descendentes de famílias que constituíam a nata na Europa, há
oito, dez ou mais séculos. Os Capetos de Bourbon – que por um
longo período dominaram a Argentina – já eram uma casa real
desde o século X. Reinavam sobre o território hoje chamado
Ile-de-France, ampliando seu reino a cada geração. Mas numa
sociedade capitalista há uma continua mobilidade – pobres que
enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a fortuna e
se tornam pobres.