O artigo a seguir foi publicado no Valor Econômico; foi escrito por Paulo Sérgio Pinheiro (Cogut Visiting Professor , Center for Latin American Studies, Brown University, EUA; foi secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso).
Na Sala São Paulo, onde estava sendo velado o corpo de Ruth Cardoso, o professor Antonio Candido estava discretissimamente ao lado de Fernando Henrique Cardoso. A presença do mais ilustre decano dos intelectuais brasileiros pode ser tomada como um símbolo do respeito e da importância de Ruth na universidade. Não tive o privilégio de ser seu aluno, como meu colega Sergio Adorno. Não fui seu orientando de tese, como foi Maria Filomena Gregori. No entanto, por um breve tempo, fui seu colega no Departamento de Ciência Politica da Universidade de São Paulo, para onde Ruth veio depois de muitos trabalhos em antropologia, área na qual tinha feito seu doutoramento.
A vida acadêmica, em meio à competição inevitável entre carreiras, produção e visibilidade, pode ser bastante penosa. A presença de Ruth era um bálsamo nas discussões, pelas marcas que dintinguiam sua personalidade. Quando penso nela, o que me vem à mente é serenidade, clareza, precisão e rigor. Casada com alguém que é referência mundial na ciência politica e na sociologia (há dois meses debateu-se, num seminário na Universidade Brown, o livro “Dependência e Desenvolvimento na America Latina”, de Fernando Henrique e Enzo Faletto, que completou 40 anos), Ruth sempre teve luz própria e trilhou caminho pessoal e original.
Deu uma grande contribuição aos temas relativos à mulher, especialmente no que diz respeito à discriminação, à violência e à pobreza. Na preparação da 4ª Confêrencia Mundial sobre as Mulheres, em Pequim, Ruth chamou a atenção para a “feminização da pobreza” e alertou que as mulheres comprendiam os mais pobres dos pobres. Há uma quantidade enorme de talentos entre as mulheres por causa da discriminação de que são alvo. Desde ali, e depois sempre, ela insistiu que os programas de combate à pobreza deveriam constantemente levar em conta os problemas enfrentados pelas mulheres: “O desenvolvimento não basta. O desenvolvimento deve ser acompanhado de eqüidade”.
Ruth tinha uma maneira especial de fazer esses apelos com enorme consistência, não só porque tudo era baseado em pesquisa sólida, mas também por apresentar esses pontos candentes com sobriedade e firmeza. Nela, a indignação não fazia nenhuma conexão com apelo fácil.
Foi voz forte contra a “feminização” da pobreza e na defesa do desenvolvimento completo, aquele que se pode reconhecer também na eqüidade
Poucos intelectuais têm a oportunidade de transferir para as políticas públicas sua produção acadêmica (Fernando Henrique era, com ela, uma das poucas exceções). Ruth fez essa transição de forma extremamente bem-sucedida nos programas da Comunidade Solidária (depois do final do governo Fernando Henrique, Comunitas), lançando programas altamente inovadores em termos de políticas sociais. Uma das mágicas possíveis da democracia é a possibilidade de desenvolver parcerias entre a sociedade civil e o governo, sem que aquela perca sua autonomia.
Ruth não somente desenvolveu programas de fortalecimento da sociedade civil, por meio de uma rede interativa do terceiro setor, compreendendo organizações não-governamentais e entidades sem fins lucrativos, como desenvolveu o voluntariado. Articulou todas essas iniciativas com membros de diversos ministérios e representantes da sociedade civil. Foi capaz também de chamar para a Comunidade Solidária o meio empresarial, dando contribuição decisiva para o incentivo à responsabilidade social das grandes corporacões.
Somente Ruth, pelo respeito que merecia como intelectual, mas também por sua independência de pensamento e a recusa da instrumentalização da sociedade civil pelo Estado, poderia fazer essa articulação. Ela se reinventou como mulher do presidente (evito usar a denominação usual dada à sua posição, que detestava), construindo uma via própria. Devo dizer que, por certo tempo, fiz parte do conselho da Comunidade Solidária, apenas para me referir ao privilégio de assistir a algumas reuniões que ocorriam na Granja do Torto. Com uma vasta audiência, Ruth conseguia sempre tornar os debates claros e a discusssão jamais resvalava para o burocratico ou o retórico.
Minha última visão de Ruth foi por meio de meus alunos na Universidade Brown, que dela me trasmitiram uma imagem dedicada, atenta e criativa. Ela tinha o dom de provocar o melhor que sempre há nos alunos e caminhar com eles na descoberta. Além de sua influente obra, seus artigos e seus livros, Ruth deixa a flama plantada em cada uma das inúmeras teses de doutoramento que orientou. O ritual interminável dos júris de tese, Ruth os transformava em momentos de debate intelectual.
Seria incompleto terminar este testemunho tão limitado sem lembrar da Ruth na sua família. Lembro de um anarquista italiano que criticava companheiros dizendo como eles queriam transformar o mundo se não conseguiam nem se dedicar à sua própria família. Apesar dos tantos e diversos caminhos de Ruth, e suas tantas realizações, seus filhos, Paulo Henrique, Beatriz e Luciana – e depois seus netos – sempre tiveram carinhosa prioridade ao longo de uma trajetória tão límpida. Formidável legado.
Uma homenagem merecida. Ruth Cardoso foi uma mulher que não se limitou a ser “primeira-dama”; muito pelo contrário: o papel de primeira-dama seria muito menor do que ela.